Todos nós já ouvimos falar na violência doméstica sofrida por mulheres heterossexuais, mas e quanto àquela que ocorre entre casais de gays e lésbicas? Será que o tipo de violência é parecido? Ou tem diferenças? A resposta para estas perguntas é, ao mesmo tempo, “sim” e “não”, isto é, a violência doméstica ocorre mais ou menos da mesma forma entre todos os casais (sejam eles gays ou não), mas no caso dos homossexuais ela apresenta algumas características específicas. Antes de começar, no entanto, vamos definir a violência doméstica entre casais como qualquer agressão física, sexual e/ou psicológica através da qual um indivíduo tenta estabelecer e manter controle e poder sobre seu parceiro.
Em primeiro lugar, a violência doméstica entre casais gays só começou a ser estudada na década de 90 (no caso dos heterossexuais ela é pesquisada desde 1970), apesar de ainda existir um grau muito alto de resistência em falar deste assunto. Isto ocorre por dois motivos distintos: nossa sociedade tem preconceito contra homossexuais (e, consequentemente, não se interessa em estudar temas ligados a esta parcela da população), e a comunidade gay, de um modo geral, tende a evitar o tema por medo de reforçar estereótipos negativos sobre a homossexualidade (ou seja, “não vamos lavar roupa suja em público porque isso vai aumentar ainda mais o preconceito contra nós”). O problema com esta situação é que a violência doméstica homossexual é considerada atualmente um dos três riscos mais importantes à saúde dos gays, ficando atrás apenas do HIV e do abuso de álcool e drogas.
De acordo com pesquisas feitas nos Estados Unidos, a violência doméstica entre casais homossexuais ocorre aproximadamente entre 12% a 39% dos relacionamentos, uma estatística quase idêntica à dos heterossexuais. No Brasil, infelizmente, não existem pesquisas sobre este assunto e o único material que existe em português é um manual do Grupo Gay da Bahia. Apesar das estatísticas semelhantes, uma diferença crucial entre a violência doméstica sofrida por hetero e homossexuais está relacionada com o preconceito contra gays e lésbicas. Um exemplo disto é a ameaça que o agressor faz de revelar a homossexualidade de seu parceiro para familiares, amigos e chefes (situação conhecida como “outing”), caso este não ceda às suas demandas de controle e poder. Ao mesmo tempo, o homossexual que é vítima de violência pode ter dificuldade em encontrar apoio (por parte de sua família ou de instituições tais como polícia, serviços legais e sociais, grupos especializados em violência doméstica, médicos e psicólogos), apoio este necessário para sair da situação violenta.
O preconceito internalizado (ou seja, o ódio que alguns indivíduos sentem em relação à sua homossexualidade), também é um fator característico da violência doméstica entre gays. No caso do agressor, o preconceito internalizado pode fazer parte de uma baixa autoestima ou inadequação sexual que o sujeito procura aumentar exercendo poder sobre seu parceiro. Pode ocorrer, igualmente, que o parceiro represente elementos de sua própria identidade sexual, aspectos estes com os quais o agressor se sente desconfortável. No caso da vítima, o preconceito internalizado pode fazê-la acreditar que o relacionamento, em si mesmo, é errado – uma manifestação de sua sexualidade “doentia” –, que a violência é apenas um outro aspecto de uma relação “perversa”, fadada ao fracasso, e que ela é, de alguma forma, merecedora ou culpada pela violência. Mais grave ainda é o fato de que, com poucos modelos positivos de casais gays nos quais se espelhar, existem indivíduos que acabam achando que esta é uma forma “normal” de se relacionar.
Em segundo lugar, a violência doméstica entre homossexuais é um assunto que, além de ser tabu, é cercado de mitos. Ideias tais como “a agressão é sempre cometida por um homem contra uma mulher” e “homossexuais têm mais facilidade em terminarem seus relacionamentos do que heterossexuais” são preconceituosas, incorretas e não nos deixam perceber que a violência doméstica é um problema que está relacionado com controle e poder, não com gênero, nem muito menos com orientação sexual. No caso específico dos gays, tomar a decisão de abandonar o agressor é ainda mais difícil porque significa assumir a própria homossexualidade, ao mesmo tempo em que o sujeito precisa enfrentar obstáculos adicionais, tais como lidar com profissionais (psicólogos, assistentes sociais, médicos, advogados, juízes, policiais) preconceituosos e inexperientes em atender este setor da população.
Em suma, na medida em que relacionamentos homossexuais são cada vez mais aceitos e legitimados, tanto pela comunidade gay, quanto pela sociedade mais ampla, precisamos também reconhecer a existência de violência doméstica nestas relações, desenvolvendo pesquisas e aumentando o número de serviços disponíveis tanto para vítimas quanto para agressores.