“Olhar diretamente nos olhos da mortalidade não é fácil. Para evitar isso, nós escolhemos continuar vendados, no escuro em relação às realidades da morte. No entanto, a ignorância não é uma benção – é só um tipo mais profundo de pavor” (nota da autora, p. 11).
O livro “Confissões do Crematório” (título original: ‘Smoke gets in your eyes: and other lessons from the crematory’)* escrito pela agente funerária Caitlin Doughty, é uma leitura instigante e profundamente envolvente. Publicado em 2014 nos EUA, tornou-se um best-seller do New York Times, e chegou ao Brasil em 2016, editado pela DarkSide Books.
Ao contrário do que o título possa sugerir, este livro não é de modo algum “mórbido” ou “deprimente”. Muito pela contrário, é uma narrativa acessível, onde histórias reais de uma casa funerária, se misturam a fatos históricos e antropológicos. Tudo com uma boa dose de leveza e, ouso dizer, de bom humor, que apenas um ser humano profundamente empático é capaz de proporcionar.
Apesar de ser organizado em capítulos, o livro pode ser dividido em dois grandes momentos. Na primeira metade Caitlin narra seu dia a dia de trabalho em um crematório, ao mesmo tempo em que nos conta um pouco de sua vida e o motivo dela ter escolhido um trabalho tão, digamos assim, “inusitado” para os padrões atuais: aos 8 anos de idade Caitlin presenciou a morte de uma criança em um shopping center e, a partir daí, desenvolveu um Transtorno Obsessivo Compulsivo grave. “Com medo da morte, eu queria recuperar o controle sobre ela. Achei que ela tinha que ter pessoas favoritas; eu só precisava ter certeza de ser uma delas” (p. 46).
Anos mais tarde, já formada em História Medieval, Caitlin decide trabalhar na indústria funerária como uma forma de superar seus medos. “Então, de verdade, o que uma boa moça como eu estava fazendo trabalhando em um crematório assustador como a Westwind? A verdade é que eu via aquele trabalho como uma forma de consertar o que aconteceu comigo quando eu tinha 8 anos. A garota que ficava acordada à noite com medo, encolhida debaixo da coberta, acreditando que, se a morte não pudesse vê-la, não poderia levá-la” (p. 48).
Ao longo de toda a obra, a autora tenta transformar nossa relação com a morte, frisando a importância de desenvolvermos rituais de significado verdadeiro, envolvendo o morto, a família e a sociedade como um todo. Critica, ao mesmo tempo, a “indústria da morte”, e a medicalização desta, um conceito que surgiu na década de 30.
“No final do século XIX, morrer em um hospital era um destino reservado a indigentes, às pessoas que não tinham nada nem ninguém. Quando tinha escolha, a pessoa queria morrer em casa na cama, cercada de amigos e familiares. (…) Os anos 1930 trouxeram o que é conhecido como ‘medicalização da morte’. A ascensão dos hospitais escondeu os cheiros e os sons desagradáveis da morte. Enquanto antes um líder religioso podia conduzir um moribundo e guiar a família na dor, agora são os médicos que acompanham os momentos finais de um paciente. (…) O hospital era um lugar onde os moribundos podiam passar pelas indignidades da morte sem ofender a sensibilidade dos vivos” (p. 56-57).
Nossa sociedade oculta constantemente a morte e ficamos impotentes quando ela, inevitavelmente, chega. Nosso profundo horror aos mortos nos faz esquecer que “os cadáveres mantêm os vivos presos à realidade” (p. 172) e que falar de finitude é, sobretudo, falar de vida. “A morte guia todos os impulsos criativos e destrutivos que temos como seres humanos. Quanto mais perto chegamos de entendê-la, mais perto chegamos de entender a nós mesmos” (nota da autora, p. 11).
Vale mencionar, por último, a primorosa edição da DarkSide Books. Com 256 páginas, o livro possui capa dura com baixo relevo, laterais das folhas em vermelho e é ilustrado com esquemas de anatomia. Inclui, também, um marcador de livro em formato de carta de tarô.
Nota: * “Smoke Gets in Your Eyes” é o nome de uma música de 1933 que ficou conhecida na voz do grupo The Platters.